O lado B da bolacha

Comportamentos e hábitos de consumo vêm sendo impactados desde o início da pandemia. Um levantamento da Kantar Worldpanel mostra claramente que a preferência dos consumidores se intensificou pela busca de alimentos práticos e mais refeições feitas em casa. Na comparação do primeiro quadrimestre de 2020 com o segundo, o consumo de alimentos e bebidas dentro do lar cresceu 32% com o café da manhã puxando uma alta de 14%, seguido dos períodos de almoço (12%) e jantar (11%), capta a consultoria. O delivery ganhou força como serviço complementar ao consumo no dia a dia, motivado, principalmente, pela indulgência, com as classes A/B à frente de um avanço de 40% nesse canal.
“Quando a motivação é prazer e indulgência, os biscoitos são a categoria de destaque, crescendo 22% em novos momentos desde o início da pandemia”, informa Manuela Bastian, diretora da área de soluções da Kantar. Segundo ela, passado o cenário de extrema incerteza, a necessidade de se estocar caiu e compras menores seguem em destaque no consumo in home. Independentemente da classe social, analisa a consultora, os brasileiros seguem incrementando ocasiões de consumo em casa movidos por hábito e prazer, incluindo linhas de biscoitos doces e salgados, hoje segmentadas por momentos de consumo, tipos de porção, formato de embalagem e faixa de público. “As pessoas estão indo mais à cozinha, porém o tempo está sendo crucial e os consumidores acabam optando por menus mais simples, com pratos que levam até 20 minutos para o preparo”, explica.
Ana Paula Gilsogamo, analista sênior da Mintel, confirma que, ficando mais tempo dentro de casa, mais brasileiros passaram a cozinhar e comer impactando a categoria de snacks (lanchinhos) para consumo em movimento ou fora de casa. Esse segmento hoje inclui tanto linhas de salgadinhos e biscoitos embalados como sanduíches e sobremesas preparados na hora. Além disso, a recessão econômica e a preocupação com a saúde passaram a exercer maior influência na forma como o consumidor realiza suas escolhas dentro da categoria. “Essa mudança de hábito abre oportunidade para que as marcas invistam em embalagens econômicas, ofereçam maior quantidade e atendam esse maior volume de pessoas dentro de casa com preços mais em conta”, sustenta ela.
De acordo com a pesquisa Mintel Hábitos de Consumo de Snacks, de março de 2020, antes mesmo da pandemia, 21% dos brasileiros com 16 anos ou mais que haviam comido snacks/lanchinhos nos três meses anteriores à pesquisa (realizada em dezembro) afirmaram ter degustado snacks/lanchinhos de marca própria, a exemplo de linhas de supermercados, nesse período.
“Principalmente para biscoitos doces e salgados existe a oportunidade de se incentivar o seu uso durante o preparo de receitas, uma vez que de acordo com o estudo Tracker Global Covid-19 da Mintel, 31% dos brasileiros afirmaram estar “cozinhando mais em casa”, sendo biscoitos já utilizados como ingredientes. O relatório Biscoitos Doces e Salgados (Mintel/2019) confirma que 15% dos entrevistados afirmaram consumir biscoitos doces e/ou salgados como ingrediente em uma receita.

Menos é mais
Escaldada por outras crises e desde sempre com as barbas de molho, a indústria de biscoitos observa com alguma naturalidade as mudanças de hábito provocadas pela pandemia. Ainda que avesso a projeções, o setor considera que o atual e o próximo exercício devem confirmar a tendência predominante nos últimos anos de avanço na receita e queda nos volumes, registrada no fechamento de 2019. A indústria de biscoitos atingiu, no último ano, faturamento de R$ 18,7 bilhões com a venda de 1,47 milhão de toneladas (t), cravando aumento de 1,7% em valor e retração de 1,08% em volume na comparação com 2018 – R$ 18,4 bilhões e 1,49 milhão de t, respectivamente, repassa a Abimapi (Associação Brasileira das Indústrias de Biscoitos, Massas Alimentícias e Pães & Bolos Industrializados).
Segundo a entidade, a falta de confiança na economia, que não permite grandes investimentos ou compras a longo prazo, e a conjuntura enfrentada pelo país trouxeram a racionalização do consumo, movimento hoje bastante enraizado. “Pudemos notar nitidamente este hábito de compra com o crescimento do segmento de rosquinhas (6,5% em volume e 4,7% em faturamento), muito em função das embalagens grandes, os pacotões, disponibilizados no varejo por menor patamar de preços, consolidando a famosa relação de custos versus benefícios”, interpreta Claudio Zanão, presidente executivo da Abimapi.
Desde março, uma pesquisa da Nielsen apontava que muitas pessoas estavam armazenando alimentos e optando pelos não perecíveis, como feijão enlatado, snacks de frutas e biscoitos. Nesse período esse comportamento gerou um aumento de 11% na categoria “industrializados”. “Nós crescemos em consumo, mas não podemos comemorar pela situação que estamos enfrentando. Em decorrência da covid-19 e da mudança dos hábitos, as pessoas estão optando por produtos com maior shelf life (vida de prateleira), praticidade e um bom custo/benefício”, nota Zanão. Pelos seus cálculos, essa situação gerou, entre fevereiro e abril, um aumento médio de 15% no volume de vendas das categorias sob o guarda-chuva da Abimapi. “Esse número não deve se manter e a expectativa é chegar ao final de 2020 com um crescimento de 3% a 5%, que já será um ótimo resultado para o setor”, torce o dirigente.
Especializada no balcão do varejo, a Euromonitor International confirma a tendência percebida pela indústria de crescimento em valor e queda em volume. Pelas planilhas da consultoria, a categoria de biscoitos saiu há cinco anos de R$ 20.011,1 milhões e 1,318.9 milhão de t para R$ 24.976,8 milhões e 1,260.8 milhão de t em 2019, com predomínio em volume e valores do segmento doce. Nos próximos cinco anos, projeta a Euromonitor, o setor deve alcançar receita de R$ 25.654,4 milhões para um volume de 1,271.8 milhão de t.

Investimentos a pleno
Número um na produção em volume e venda de biscoitos e massas no país, a M.Dias Branco adotou uma série de medidas com o intuito de prevenir a disseminação da pandemia entre seus colaboradores. Além da instauração de um comitê de crise formado por gestores das mais variadas áreas para agilizar as ações relacionadas à covid-19, estabeleceu como foco garantir o abastecimento, relata Fábio Melo, diretor de marketing da companhia. Em paralelo, aumentou o investimento social, com doações (mais de 400 toneladas de alimentos e R$ 2,4 milhões para apoio a hemocentros), e também promoveu campanhas de cunho social.
“Temos marcas líderes em todos os segmentos de biscoitos e, mesmo durante esse período da quarentena, não paramos os lançamentos, com destaque para as marcas Piraquê, Adria, Vitarella, Fortaleza e Richester”, comenta Melo. No primeiro semestre, repassa ele, em função da pandemia alguns investimentos foram adiados à espera de um cenário mais claro. Mas no total a companhia programou um aporte da ordem de R$ 250 milhões para 2020, sendo R$ 101 milhões investidos na primeira metade do ano.
Objetivando a manutenção da liderança conquistada no setor, a M.Dias Branco iniciou no fim do ano passado uma reestruturação comercial para expandir a forte presença regional de algumas de suas marcas nacionalmente. O impacto positivo das mudanças na ala comercial já pode ser observado nos resultados da companhia no segundo trimestre de 2020, reporta Melo. “O volume total de vendas foi 19% superior ao mesmo período do ano passado, com o crescimento de 14,2% em biscoitos e de 37,4% em massas, na comparação do mesmo período. Com isso, consolidamos nossa liderança nas duas categorias e hoje temos fatia de 34,5% de share em biscoitos, com crescimento de 1,2% em relação ao primeiro trimestre do ano”, assinala o executivo. Dessa forma, a companhia alcançou receita líquida trimestral histórica de R$ 1,89 bilhão, 22,2% superior ao segundo trimestre de 2019, sublinha.
Acompanhando as tendências captadas durante a pandemia, a exemplo da alta em segmentos como a de rosquinhas confirmada pela Abimapi, a marca Fortaleza reformulou sua linha, apresentando novo formato, receitas e embalagens nos sabores Coco, Chocolate e Leite, em pacotes de 350g. Já a Vitarella apostou nas embalagens econômicas, com rosquinhas sabor coco e leite, em pacotes de 700g para o mercado do Centro-Oeste.
Com relação à distribuição, a companhia antecipou sua inserção no e-commerce, uma realidade que estava mapeada no planejamento e o isolamento social catapultou. “Criamos um departamento focado na estratégia digital, e já formalizamos parcerias com o aplicativo Rappi e também em marketplaces já consolidados, como B2W e Magazine Luiza”, informa Melo.

Crescimento contínuo
Segunda no ranking nacional do setor de biscoitos, a Marilan insere que o surto da covid-19 teve um impacto imediato, desencadeando transformações em quase todas as áreas da empresa. “Como fazemos parte de um setor essencial, continuamos com a operação, seguindo todas as premissas para proteger a saúde e o bem-estar dos nossos colaboradores”, conta Sérgio Tavares, presidente da companhia.
“Sabemos do importante papel que desempenhamos junto à sociedade e, por isso, também realizamos uma grande campanha de doações, iniciando por áreas carentes nas regiões onde estão nossas fábricas, em Marília, no interior de São Paulo; e em Igarassu, em Pernambuco”, grifa Tavares.
Quanto às operações no setor de biscoitos, o dirigente sustenta que atualmente, graças as pesquisas e lançamentos contínuos, mesmo sob a pandemia, a Marilan segue ofertando um extenso portfólio de produtos e marcas. “Estamos presentes em cerca de 70% dos lares brasileiros, e esta é uma conquista que nos enche de orgulho, além de mostrar que seguimos no caminho certo, sendo reconhecidos como a marca especialista em biscoitos e a segunda maior fabricante da categoria no país”, assinala.
Com um portfólio que cobre todos os segmentos, a Marilan também disputa as prateleiras de torradas, com a marca LEV. Ela reforça a atuação da empresa no segmento de saudáveis, em alta por conta da pandemia. Com relação a lançamentos, Tavares acena com novidades nos redutos de recheados, “com casca mais fina”, e wafers, com dois sabores diferentes em um único biscoito, nas versões consagradas das sobremesas (chocolate e chocolate branco, limão e chocolate, e frutas vermelhas e chocolate). “Já a marca Teens, presente no dia a dia dos adolescentes, ganhará um portfólio completo de recheados”, antecipa o executivo.
Para ele, o ano de 2020 está sendo um dos mais desafiadores das últimas décadas, mas o desempenho do setor alimentício, no qual se insere a Marilan, cumpre papel-chave e tem sido fundamental para o desenvolvimento econômico do país. “Estou otimista e destaco que nosso crescimento contínuo só é possível porque lá na ponta há um cliente feliz e satisfeito, que reflete o comprometimento dos nossos colaboradores. É em momentos como esse que conhecer hábitos e necessidades do seu consumidor faz toda a diferença”, pondera o dirigente.
Com relação ao novo normal, o presidente da Marilan observa que a busca por embalagens práticas e maiores ganharam espaço e deverão ser mantidas. “Também houve um crescimento no consumo de itens indulgentes e, por isso, estamos próximos do consumidor para acompanhar as tendências e adaptar as demandas do momento”, frisa. A Marilan, completa, sempre se manteve atenta a novos formatos de distribuição para garantir a entrega aos consumidores. Para ele, o fortalecimento do e-commerce sempre foi tido como prioritário e inevitável. “Acabamos de fechar uma parceria com o Cornershop, aplicativo que oferece serviços de delivery de supermercado e lojas especializadas, fortalecendo o momento de transformação digital que estamos vivendo”, diz.

Cesta básica
Também as marcas sob o guarda-chuva do Grupo Dallas mantiveram seus balanços na ascendente durante a pandemia. De acordo com a diretora comercial Dyrlene Ferrugem, a operação registrou crescimento expressivo nas linhas de valor agregado mais baixo, uma vez que biscoitos praticamente se tornaram itens de primeira necessidade. Em São Paulo, exemplifica ela, muitas padarias deixaram de produzir e atender diariamente. Assim os consumidores recorreram aos alimentos não perecíveis, mais fáceis de armazenar e consumir. “Nosso maior destaque vai para a linha que compõe a cesta básica (biscoitos laminados, como Maria, cream cracker, água e sal e maisena). Esses itens, assim como as rosquinhas, registraram crescimento, visto que eles têm custo menor e alimentam toda a família”, relata.
Com o inesperado aumento da venda, a empresa ampliou o tempo de produção das máquinas, realocou equipes para as linhas de maior consumo e ainda contratou mais profissionais para dar conta da demanda. Embora a presença do portfólio seja mais forte nos segmentos populares, a Dallas não descuidou das linhas premium. “Estes, porém, são alimentos voltados à experimentação, que proporcionam momentos de prazer ao consumidor”, sublinha Dyrlene.
Assim como outros fabricantes do setor, a Dallas/Germani tinha engatilhado para 2020 uma programação intensiva de lançamentos. E esse cronograma foi mantido. “Lógico que tivemos alguns ajustes, por conta do aumento da demanda, tanto do mercado interno quanto do externo, visto que a exportação também cresceu exponencialmente”, comenta a executiva. Mesmo diante das dificuldades, a exemplo de não oferecer degustação ou desenvolver ações de merchandising no ponto de venda (PDV), reduzindo a aproximação com o consumidor, a empresa decidiu seguir investindo. “Estamos ampliando ainda mais a produção e os canais de comunicação e distribuição para chegar ao consumidor, seja pelas redes sociais, seja pelo e-commerce. Também estamos diversificando a linha e agregando valor ao portfólio”, resume a diretora.
Entre as novas atrações do menu de itens de maior valor em tempos de pandemia, ela insere os novos Biscotti Bicolori, linha exclusiva com versões que até então eram importadas. Com os investimentos feitos no início do ano na estrutura fabril, a companhia passou a produzi-los no Brasil, nos sabores Banoffee e o Cappuccino. “Estamos ainda preparando a primeira geração dos biscoitos folhados Millefoglie, inspirados nos Sfogliatini da Itália”, adianta Dyrlene. Para desenvolver essa especialidade, conta ela, a empresa adquiriu maquinário italiano, que permite a produção industrial da massa utilizada no doce Mil Folhas.
Mesmo com todas as dificuldades provocadas pela quarentena, Dyrlene enfatiza que não houve retração no consumo de alimentos essenciais. O que se observou, segundo ela, foi uma readequação da categoria de biscoitos, com mais variedades de gramatura, elaborados para famílias menores ou até mesmo para pessoas solteiras (single pack). “Se for para ter uma retração no consumo ou um retorno aos volumes antigos, isso se dará somente no ano que vem”, argumenta a a executiva, projetando crescimento nas vendas para 2020 em torno de 12-13%. “Essa é a nossa estimativa inicial, mas é capaz de conseguirmos um avanço até maior em alguns segmentos do Grupo Dallas”, sustenta. ■

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