Mercado ativo

Surpreendidas pela quarentena deflagrada em março, com o avanço da pandemia de covid-19, empresas de diversos portes e segmentos voltadas ao consumo tiveram que, a toque de caixa, reinventar as estratégias de venda. Observando uma corrente em expansão no exterior, elas descobriram os chamados marketplaces como peças-chave na digitação do varejo em alguma partes do mundo durante o isolamento social. Um levantamento do instituto de pesquisa de mercado holandês Dealroom mostra que, embora esse movimento tenha começado há anos, a pandemia acelerou em meses o equivalente a uma década as operações de boa parte das empresas. Segundo a consultoria, a participação das vendas on-line no Reino Unido que, em dezembro de 2019 era de 20%, saltou em junho para 31%. Esse avanço, antes discreto, foi intensificado pela mudança de comportamento do consumidor, que passou a buscar variedade maior de produtos e categorias on-line.

Marketplaces de grande porte no Brasil, como B2W (Americanas.com, Submarino e Shoptime), Magazine Luiza e Mercado Livre, deram um salto triplo no número de usuários e assistiram a um vertiginoso crescimento da demanda por categorias de produtos antes vistas como tímidas, a exemplo de alimentos perecíveis, guloseimas como chocolates e biscoitos finos e artigos de saúde. Entre os campeões de venda da plataforma, o Mercado Livre incorporou de meados de fevereiro ao início de maio cerca de 5 milhões de novos consumidores na América Latina, a metade deles (2,6 milhões) no Brasil.

Cerca de 20% dos novos usuários fizeram sua primeira compra nas categorias de bens de consumo e alimentos, pontua Julia Rueff, diretora de marketplace do Mercado Livre. “Com isso, aceleramos o lançamento da ferramenta de navegação para a categoria supermercado”, afirma ela, acrescentando que a iniciativa deve ajudar a elevar a frequência de compra dos usuários e contribuir para o aumento da penetração do comércio on-line no varejo.

Esse crescimento escancarou as expectativas do e-commerce para 2020 no Brasil. Segundo a Associação Brasileira de Comércio Eletrônico (ABComm), com faturamento de R$ 89,8 bilhões em 2019 a estimativa era que as vendas on-line crescessem 18% em 2020. “Mas com a pandemia, passamos a ser o principal canal, com aumento de vendas na casa dos 52% na quarentena”, frisa Maurício Salvador, presidente da ABComm, prevendo que até o final de 2020 o setor deve alcançar um incremento de 30% nos negócios.

Em apenas três anos de operação o e-commerce do Magazine Luiza cresceu 185% no primeiro trimestre em relação ao mesmo período de 2019, gerando um movimento que pisou no acelerador com alta de 203% nos primeiros 20 dias de maio na comparação com o mesmo período do exercício anterior. Leandro Soares, diretor de marketplace do Magazine Luiza, comenta que a plataforma quase dobrou o número de parceiros, saltando de 15 mil para 26 mil. No Brasil, observa ele, são 60 mil varejistas formais atuando no varejo on-line, enquanto que, no físico, o número chega a 5 milhões. Para o executivo, no entanto, ainda há muito a ser trabalhado. “Com as lojas físicas 100% fechadas até maio, a companhia registrou crescimento de 45%, justamente porque o e-commerce triplicou”, assinala.

Shopping centers virtuais
Confirmando a tendência de digitação no varejo, a Nestlé ampliou suas vendas pela internet durante a pandemia. Além do site onde vende diretamente ao consumidor, investiu no modelo de marketplace usado tradicionalmente pelos grupos varejistas. Operando dois shopping centers virtuais, das vendas totais até maio contabilizou fatia de 8,1% proveniente do comércio eletrônico, índice que cresce a cada mês, repassa Carolina Sevciuc, diretora de transformação digital da companhia.

No ano passado, relembra ela, a Nestlé lançou o marketplace Vem de Bolo, especializado em produtos de confeitaria e itens para festas. Com 60 boleiras cadastradas, o serviço conta com 520 confeiteiros na fila de espera. Em março deste ano, as vendas da plataforma cresceram 500% em relação a fevereiro e, em abril, o aumento foi de quase 200% sobre março, crava Carolina. Ao todo, 6,2 mil pessoas já compraram na plataforma, contabiliza ela.

Em junho, a empresa pôs no ar o mercadoatevc.com.br, seu o segundo marketplace. Nessa plataforma, pequenos comerciantes podem abrir lojas e vender produtos da marca e também de outros fabricantes. O shopping virtual foi desenvolvido em parceria com a fintech Ebanx e já nasceu com 10 mil lojas cadastradas em todo o país.

A criação do site é gratuita, mas os lojistas recebem treinamento on-line para criar e administrar a loja virtual. Cada lojista paga a taxa de 3,9% por transação, cifra em linha com o praticado por grandes marketplaces durante a pandemia.

“Entendemos que havia a responsabilidade de ajudar principalmente o pequeno varejo, que não tinha conhecimento sobre venda on-line”, observa Carolina. Segundo ela, uma pesquisa do Sebrae aponta que, em abril, dos 17 milhões de pequenos negócios no país 15 milhões tiveram queda de faturamento de cerca de 75% em função da pandemia. “Enquanto isso, as vendas on-line de alimentos crescem de forma acelerada”, compara a executiva.

Antes dessa aceleração no varejo digital, a Nestlé já tinha operação de venda on-line de produtos para distribuidores e atacadistas. Em fevereiro último, colocou no ar a atevc.com.br para venda a comércios de pequeno porte. É por essa plataforma que os comerciantes montam suas lojas virtuais.

De acordo com a diretora, a Nestlé começou a se preparar para venda on-line direta aos consumidores há dois anos. O primeiro projeto foi o Empório Nestlé, lançado no ano passado e que complementa a operação das nove lojas físicas que levam o mesmo nome. Nos primeiros cinco meses deste ano, situa a executiva, as vendas cresceram 180% em relação às de 2019.

Essa loja on-line opera como um laboratório para observar e entender melhor o consumidor, além de descobrir formas de melhorar a oferta para os lojistas, argumenta Carolina. Durante a pandemia, ela também foi aproveitada para substituir a operação da KitKat Chocolatory, loja física no Morumbi Shopping, em São Paulo, que foi interrompida em função da quarentena.

Redirecionamento comercial
Com o fechamento de parte do varejo e a mudança no comportamento de compras dos brasileiros, a Mondelez também foi obrigada a fazer adaptações na distribuição. “Tivemos que redirecionar linhas que iam para bares e restaurantes para os mercados de bairro e reforçar muito o comércio eletrônico”, relata Maria Claudia Souza, diretora de assuntos corporativos da companhia. Entre o fim de março e início de abril, a Mondelez fechou parceria com 1,1 mil mercados on-line para a venda de suas marcas, incluindo varejistas como Magazine Luiza e Mercado Livre.

Pelos cálculos da executiva, as vendas de Páscoa on-line tiveram aumento de 700% em relação a 2019 e representaram em torno de 10% das vendas da data pela companhia neste ano. Para Maria Claudia, o rápido avanço no comércio eletrônico e ativações promocionais permitiram à Mondelez fechar a principal comemoração do setor de chocolate com retração de 5% em relação a 2019.

Apesar das mudanças na distribuição e nas linhas de produção, a empresa mantém o mesmo ritmo de produção de antes da pandemia e também seus 9 mil empregados no país, reporta a diretora. Depois de colocar em trabalho remoto os empregados de áreas administrativas e pessoas do grupo de risco, companhia adotou medidas de distanciamento social e cuidados sanitários que incluem medição de temperatura, uso de máscaras e álcool em gel e mantém os funcionários das fábricas operando normalmente. Com isso, apenas alguns poucos funcionários que estavam trabalhando em sistema remoto tiveram covid-19, registra a diretora.

Receita inflada
O e-commerce brasileiro faturou 56,8% a mais nos cinco primeiros meses de 2020 em comparação com igual período do ano passado, capta estudo do Compre&Confie, empresa de inteligência de mercado focada em comércio eletrônico, em parceria com a ABComm. Embora o valor do tíquete médio tenha caído 5,4% – de R$ 420,78 para R$ 398,03 –, o aumento do faturamento foi possível porque houve crescimento de 65,7% no número de pedidos, de 63,4 milhões para 105,06 milhões, confronta André Dias, diretor executivo do Compre&Confie.

Para ele, os resultados refletem a mudança de comportamento do consumidor ao comprar na internet, que deve permanecer mesmo com o fim da pandemia. “Quem optou pelo e-commerce vai ficar cada vez mais engajado nas compras à distância e movimentar de forma significativa o consumo de categorias relacionadas às necessidades básicas do dia a dia e ao esforço de prevenção da covid-19”, comenta o dirigente.

Apesar de comprar mais, os brasileiros reforçaram a cautela. O tíquete médio apurado este ano foi de R$ 395,80, valor 6,1% menor do que o registrado no mesmo período do ano passado. “Mostra uma mudança nas prioridades durante a quarentena, com os brasileiros hoje fazendo compras recorrentes de itens mais baratos e de necessidade diária, em detrimento de compras únicas de segmentos de maior tíquete médio”, nota Dias. Alguns segmentos tradicionalmente importantes nas vendas on-line e que dependem muitas vezes de ambientes ao ar livre perderam força nas últimas semanas como câmeras, filmadoras e drones”, nota.

De fato, a análise a respeito das categorias que apresentaram maior variação de crescimento mostra que cartões-presente (+610%), alimentos e bebidas (+222%), instrumentos musicais (+187%), brinquedos (+170%) e papelaria (+159%) ocuparam a liderança no período.

“A categoria de alimentos e bebidas representava 1% do comércio eletrônico no ano passado. Neste ano, já representa 1,5%”, afirma o diretor do Compre&Confie. O aumento das compras on-line de alimentos levou o varejo tradicional a ampliar investimentos na área. Redes do autosserviço reforçaram os sistemas de entrega de vendas on-line, como o Pão de Açúcar (GPA), com o James Delivery, e o Carrefour, em parceria com o aplicativo de entregas Rappi. Além disso, grandes varejistas on-line reforçaram a oferta no segmento, a exemplo da B2W, que comprou em janeiro o SuperNow, shopping on-line de alimentos.
Em paralelo, as pequenas empresas que mais crescem no Brasil começaram a apostar em vendas pelo Instagram durante a quarentena da covid-19. Um levantamento do Berkeley Institute mostra que 61% das pequenas e médias empresas (PMEs) contam com canais de comercialização na rede social. Realizado com base nas 100 PMEs de maior crescimento, o estudo do Berkeley Institute em parceria com a Deloitte mostra que, apesar da evidente necessidade de avanço nas vendas digitais, 35% das organizações de crescimento acelerado não têm nem mesmo contas na plataforma do Instagram, observa Luiz Chinan, fundador do Berkeley Institute no Brasil e coordenador do levantamento. E das que têm, 39% ainda não implementaram um canal de vendas propriamente dito pela rede social, completa ele. “O que pode explicar essa timidez por parte de empresas fortes em crescimento é a dificuldade que negócios de vendas complexas têm na rede social”, explica Chinan. Organizações que vendem para outras organizações (B2B), principalmente aquelas que vendem serviços ou projetos de alta complexidade, não sabem como usar um aplicativo baseado sobretudo em imagens, complementa o especialista.
Um dado que comprova esse argumento é o fato de que 61% dos posts das PMEs analisadas no Instagram são exclusivamente compostos por imagens isoladas. Apesar da atual facilidade com a produção de vídeos por meio de smartphones, somente 20% dos posts das pequenas e médias empresas de crescimento acelerado são compostos por gravações.

Para ajudar empreendedores a usar com sucesso esse recurso de vendas, o Berkeley Institute acaba de lançar uma masterclass on-line e gratuita denominada “Estrategista de Marketing de Conteúdo no Instagram”. Ela pode ser baixada diretamente no computador do usuário e realizada a qualquer momento. Formatada pelos princípios do “gamefication”, a aula é realizada por meio de Educards, ou seja, cartões virtuais que estimulam o aprendizado. Entre outros benefícios, as cartas potencializam o recall ativo, ou seja, a criação de conexões neurais mais fortes para o rastreamento da memória.

 

Nada mais será como antes

O isolamento social ditou uma nova forma de consumo. Estudo recente da Criteo, empresa global de tecnologia em marketing, inclui comprar mercadorias on-line, pedir comidas por serviços de delivery e realizar compras através de aplicativos para smartphones entre os principais comportamentos adotados por brasileiros durante a pandemia do novo coronavírus. De acordo com dados da análise, 67% dos consumidores descobriu, ao menos, uma nova forma de compra que pretende manter para o “novo normal”, na fase pós-isolamento social.

Especializada em fornecer informação confiável a profissionais de marketing de todo o mundo, a asiática Criteo acompanhou o comportamento de consumidores nas duas últimas semanas de maio. E concluiu que, no Brasil, o isolamento social redefiniu os hábitos de consumo pessoais e expectativas a longo prazo, reporta Tiago Cardoso, diretor-geral da consultoria na América Latina.

A pesquisa também demonstrou um aumento vertiginoso de 233% na venda de alimentos on-line durante o mês de abril. Ela mostra que esse comportamento veio para ficar, com mais da metade (52%) dos entrevistados garantindo que pretende aumentar a compra digital de gêneros alimentícios – chocolates e doces inclusos – e adotar de vez essa nova forma de consumo, nota o executivo. “Os dados mostram que o impacto do novo coronavírus no fechamento de negócios não essenciais afetou diretamente as compras on-line e, consequentemente, gerou o desenvolvimento de novos hábitos. Com mais tempo em casa, 53% dos brasileiros passaram a cozinhar mais e pretendem incorporar o costume ao dia a dia”, assinala Cardoso.

“Passamos por datas comemorativas durante a pandemia, como Páscoa, Dia das Mães e Dia dos Namorados e, apesar de muitos não poderem estar juntos fisicamente, isso não impediu os consumidores de se presentearem”, observa o diretor, completando que, pela pesquisa da Criteo, 65% dos brasileiros continuarão adotando essa prática normalmente.
Segundo os dados apresentados na pesquisa, mais da metade dos brasileiros ganhou, em média, mais quilos durante o confinamento. Os millennials são os que lideram essa lista. Mesmo que em uma proporção menor, também existe uma parcela dos que diminuíram de peso, sendo a Geração Z a que mais tem representantes dessa fatia (22%).

Mesmo com a abertura gradativa de shoppings, uma grande parcela dos consumidores vai demorar para frequentar lojas físicas. Cerca de 4 entre 10 brasileiros estão prontos para voltar aos shoppings daqui a 2 meses. Um parcela ainda maior, 27%, diz que vai demorar de 3 a 5 meses para entrar em lojas físicas; 18% acreditam que o processo vai levar de 6 a 9 meses; enquanto 16% afirmam que só voltará aos estabelecimentos depois de passados mais de 9 meses. Dos respondentes, apenas 15% estariam dispostos a voltar a frequentar shoppings imediatamente, o que fortalece ainda mais o comércio on-line no Brasil. ■

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